Português:
natural, orgânico e lógico
É
comum ouvirmos falar que a língua portuguesa é uma língua difícil, ou que
“estudar português é chato”. Esse é um discurso que, em nossas aulas, estamos
tentando desconstruir, ponto a ponto; e, se queremos desconstruí-lo, é porque
ele é falso.
Quem
afirma que a língua portuguesa é difícil costuma alegar que se trata de uma
língua cheia de regras e, mais ainda, exceções às regras. Dizem ainda que as
regras têm que ser decoradas e que isso é difícil porque não fazem sentido,
porque não é possível explicá-las. Há, sim, muitas regras e suas exceções. Mas
é absolutamente falso afirmar que elas não fazem sentido. O fato de não
conhecermos a lógica de um fenômeno não quer dizer que ele não tenha uma
explicação.
Normalmente, a
justificativa para os “fatos incompreensíveis” da língua está em sua evolução. A
língua de um povo é um organismo vivo; seus usuários não têm controle sobre as
mudanças que ela sofre ao longo do tempo. Assim, como ela vai se transformando
naturalmente, as regras determinadas pelos gramáticos vão se alterando também,
na tentativa de acompanhar essas mudanças.
As gramáticas
normativas que estamos acostumados a usar nos trazem apenas essas regras, em
constante atualização. Somente as gramáticas históricas registram as mudanças,
suas razões e consequências. É por isso que, quando consultamos uma gramática
normativa (aquela que só apresenta as regras), às vezes temos a impressão de
que nossa língua é irregular, com regras sem sentido.
Insisto, então, que
essa impressão é falsa. As línguas são naturais, orgânicas e lógicas. Se em
algum momento, em decorrência da mudança natural da língua, um pouco da lógica
de suas regras se perdeu, isso não quer dizer que ela não tenha existido em um
outro estágio da língua. Isso é o que vimos em nosso estudo da flexão de número
do substantivo. Estão lembrados?
Hoje parece que não
há lógica nem regularidade no plural dos substantivos terminados em –ão, mas se recuperarmos a origem
latina dessas palavras, notaremos o quanto esse plural quando surgiu era
totalmente regular, formado a partir do acréscimo do –s a essas palavras.
Singular
em
português
|
Plural
em
português
(irregular)
|
?
|
Singular
em
latim
|
Plural
em
latim
(regular)
|
Queda do
-n-
entre duas
vogais
|
Nasalização
da vogal que
antecedia
o -n-
|
PÃO
|
PÃES
|
PANE
|
PANE-S
|
PA
-N- ES
|
PÃ - ES
|
|
LEÃO
|
LEÕES
|
LEONE
|
LEONE-S
|
LEO
-N- ES
|
LEÕ
- ES
|
|
SÃO
|
SÃOS
|
SANO
|
SANO-S
|
SA
-N- OS
|
SÃ - OS
|
Percebem?
Aquilo que parece difícil e sem sentido fica simples, lógico e, por que não
dizer, interessante?
Uma língua complexa não é uma língua difícil,
mas para dominá-la é preciso estarmos atentos, focados, fazermos relações o
tempo todo e não perdermos nenhuma parte do processo de seu aprendizado.
Certa
vez perguntaram a Guimarães Rosa – um dos maiores escritores de nosso país –
por que ele “falava difícil”. Com toda naturalidade e simplicidade ele
respondeu: “Eu não falo difícil, eu conheço as palavras...”
Isso
quer dizer que o novo pode assustar e parecer difícil, mas essa impressão logo
se desfaz quando nos permitimos descobrir, passo a passo, a beleza da
complexidade. Mas o fato é esse: se você quiser “penetrar surdamente no reino
das palavras”*, precisará estar disposto! Será necessário ler bastante,
expor-se mais a outras variedades linguísticas mais cultas, diferentes daquela
usada no cotidiano, para que as palavras “difíceis” possam se tornar familiares
e você, naturalmente, seja capaz de usar e abusar de sua língua materna e, com
isso, situar-se no mundo, fazer-se sujeito agente de sua própria história.
*Verso de um famoso poema de Carlos Drummond
de Andrade.
**As informações sobre a evolução do latim ao
português foram baseadas no trabalho do professor Paulo Bearzoti. (BEARZOTI FILHO, P. Formação linguística do Brasil. Curitiba: Nova Didática, 2002.)